“Tratei sempre os meus doentes pelo nome”
O médico Carlos Ribeiro foi o primeiro licenciado da família, mas conseguiu por a cardiologia portuguesa no mapa do avanço da medicina no século XX.
Um dos mais reputados médicos e humanistas portugueses, o cardiologista Carlos Ribeiro ainda dá consultas, mesmo a poucos dias de completar o 93.º aniversário. Quem o procura sabe que vai ser tratado pelo nome próprio e por alguém com uma experiência ímpar: diretor do Serviço da Unidade de Tratamento Intensivo para Coronários do Hospital de Santa Maria, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (1979-1981), vice-presidente da Sociedade Europeia de Cardiologia (1988-1990) e bastonário da Ordem dos Médicos (1996-1999). Publicou mais de três centenas de trabalhos científicos e é membro de várias sociedades científicas nacionais e internacionais. Além de dar consultas, continua a escrever e a investigar, mas agora mais na área da física quântica.
Porque escolheu o curso de Medicina?
Não havia outros médicos na minha família. Aliás, eu até fui o primeiro licenciado de uma família de classe média do Seixal. Naquela época, o Seixal não tinha liceu e era muito difícil para os jovens virem estudar para a capital. Não era um investimento que estivesse dentro das possibilidades económicas nem no horizonte da maioria das famílias, que não achavam assim tão importante dar estudos aos filhos. Mas os meus pais desejavam que eu estudasse e então vim para o Liceu Passos Manuel, em Lisboa, que era o liceu que na época recebia os alunos dos concelhos limítrofes. Ainda hoje tenho muitos amigos da linha de Sintra, de Cascais, etc., por causa disso. Depois, no liceu, gostava muito de Matemática e pensei até em seguir estatística, mas o problema eram as saídas. Eu não queria ser professor de liceu. Comecei então a entusiasmar-me com os propósitos da medicina, o contacto direto com as pessoas, a possibilidade de evitar mortes (na altura ainda havia a tuberculose, as gastroenterites infantis matavam) e então concorri a Medicina. Nessa altura, não havia concursos às faculdades. Quem tinha mais de 16 valores entrava no curso que queria.
Mas certamente que o curso era ainda mais exigente?
Exigente e dispendioso. Fisiologia e Anatomia eram cadeirões épicos. Em Anatomia tínhamos sete volumes para estudar que ocupavam meio metro na estante. E tínhamos mesmo de fixar aquilo tudo! Para dificultar ainda mais, não havia livros de medicina em português. Éramos todos um bocado poliglotas. A maioria dos livros era em francês, inglês e também havia muitos em alemão. Felizmente, no decorrer do curso houve um grupo de médicos que traduziu do alemão para o castelhano.
Em comparação com os dias de hoje, exercer a profissão também devia ser muito diferente.
Sem dúvida. O eletrocardiograma, por exemplo, nasceu na Holanda em 1908, mas só em 1912 começou a ser feito em humanos. Só em 1932 foi feito o primeiro eletrocardiograma em Portugal (no Hospital de Arroios). O eletrocardiógrafo era tão grande que ocupava uma sala inteira. Os cabos saíam por uma janela para chegar ao doente que tinha de estar deitado numa cama no piso de baixo porque já não cabia na sala. Quando me formei, em 1951, só existiam três aparelhos desses em Portugal.
Como era feito o diagnóstico de um enfarte, por exemplo?
Essencialmente, através da entrevista. Aliás, hoje em dia, perde-se muito o contacto com o doente e com toda a informação que ele nos pode dar em detrimento dos meios de diagnóstico muito mais avançados, como as TAC, as ressonâncias magnéticas, análises, etc. Claro que a precisão destes meios é muito maior, mas há informações preciosas que só o doente traz consigo. O doente precisa de exprimir a sua singularidade e era a partir dessa entrevista que íamos à procura do diagnóstico, a que depois se juntava a observação (auscultação, palpação, etc.). Por isso, antes, o diagnóstico assemelhava-se quase a uma investigação policial. Aliás, esse é que é o encanto e o empolgamento da medicina. É detectivesca! Costumava até dizer aos meus alunos da Faculdade de Medicina: “Nós somos como os pescadores a conversar com os nossos doentes. Só perdemos o peixe miúdo, não o peixe graúdo (ou seja, as informações válidas).”
Sente que houve uma desumanização?
Quando o doente tem uma queixa, o médico nunca pode dizer que aquilo “não é nada”. Até porque o doente vai ao médico porque está incomodado, tem dores, tem coisas que o incomodam. Pode dizer-lhe, efetivamente, que uma dor ou uma falta de ar não tem origem cardíaca ou que não é nada de grave; pode até indicar outras pistas, nem que sejam de foro comportamental ou nervoso. Mas dizer que “não é nada” é ofensivo. Outra coisa que sempre ensinei aos meus alunos é que o doente tem de ser tratado por ‘Manuel’ ou ‘Maria’ ou ‘José’ e não como multidão. Quando os alunos me diziam que já tinham feito “a história do doente da cama 23”, eu respondia: “Eu não sou ferreiro. Quero é saber quem fez a história do sr. Silva.” Havia um truque que fazia sempre. Perguntava ao doente de que terra era. E se conhecesse alguém daquela terra, pedia ao doente que, quando voltasse, entregasse cumprimentos meus a essa pessoa. Isso formava logo um elo de ligação entre mim e o doente.
Alguma vez imaginou que os meios de diagnóstico evoluíssem tanto em tão pouco tempo?
Não. Eu chego a olhar para certas tomografias como antes disso olhava para um quadro de Gauguin. Veem-se pormenores impensáveis. E percebo que os médicos se entusiasmem com a ‘finesse’ do diagnóstico anatómico.
E como é quando tem de dar uma má notícia ao Manuel, à Maria, ao José? É complicado?
Custa terrivelmente. E custa sempre, por mais anos que passem. Dar a notícia da morte de uma criança a uma família é traumatizante. E tem de haver o bom senso de apoiar os doentes, os familiares e ajudar no luto. Hoje os médicos estão preparados para isso. Sempre treinei os meus alunos para dar notícias difíceis e também aquelas que são difíceis de explicar.
Como se troca a ciência por ‘miúdos’?
Nunca se mente a um doente nem a um familiar. Mas a nossa verdade não é a verdade do doente. Não podemos transmitir-lhe as nossas intranquilidades textualmente. Um enfarte do miocárdio, por exemplo: num acidente agudo era muito difícil dizer o que é que vai acontecer nas próximas 24 ou mesmo 48 horas (sobretudo antes da criação das unidades de Cuidados Intensivos, em que a mortalidade de um enfarte, por exemplo, rondava os 50 por cento). E por que isso é difícil de explicar ensinei os mais novos a dizer: “Está melhor, mas continuamos muito preocupados.” Isto servia para ambos os lados: se corresse mal, as pessoas tinham de admitir que de facto o médico já tinha dito que estava preocupado; se corresse bem, foi porque o médico se preocupou. Depois há aquela coisa terrível das percentagens. Nunca se diz a um familiar que a operação tem 10 por cento de taxa de mortalidade. Dizemos que tem 90 por cento de chances de correr tudo bem.
No contacto direto com os doentes também deve ter tido algumas histórias divertidas.
Na cardiologia surgem sempre muitos doentes ansiosos. Aliás, cada vez mais, com o desemprego, os divórcios e outros problemas. No início da minha carreira, tive a sorte de fazer clínica geral no Seixal, que além do contacto próximo com os doentes me proporcionou grandes ensinamentos. Havia nessa altura um rapaz novo, com vinte e tal anos, que tinha aquilo que hoje chamamos de crises de pânico. Aparecia-me às três da manhã com uma ansiedade brutal. Eu conversava muito com ele, observava-o e dava-lhe às vezes alguns medicamentos tranquilizantes. Numa dessas observações, num dia em que ele se queixava de falta de ar, medi-lhe a tensão. Ora, ele achava que o ar que eu insuflava no medidor ia diretamente para o pulmão, e dizia-me: “Olhe, doutor, já me sinto muito melhor!” E eu perguntava-lhe: “Ai, é? Então vamos lá bombar outra vez”, e insuflava o aparelho mais uma vez. Um outro senhor, com uma vida complicada, também aparecia frequentemente com crises de ansiedade. Eu tinha a certeza que não era nada mais que isso. Ele era uma pessoa muito saudável. Então combinei com a enfermeira dar-lhe umas injeções de H2O, ou seja, soro. Água. Mas como aquilo era uma caixa de previdência, disse-lhe que eram umas injeções muito caras e por isso precisava da autorização do diretor do centro e que tínhamos de esperar um bocado. Depois a autorização lá veio, ele levou as injeções e ficou ótimo… como sempre tinha estado, aliás. De vez em quando, ‘piorava’ e lá passava na caixa a pedir mais injeções. Só que, azar dos azares, o filho entrou para um curso industrial em Almada à noite, e ele, para o filho não ir e vir sozinho, inscreveu-se também. E na escola descobriu o que era H2O. Apareceu-me depois e eu expliquei-lhe: “Vê como se confirmou o diagnóstico? Você não tem nada!”
Conheceu muita gente em circunstâncias particularmente difíceis. Nessas alturas, o que mais o surpreendeu nos seres humanos?
Talvez ter conhecido alguns dos vultos da nossa história atual diminuídos, na frágil condição de doentes. Houve um grande banqueiro deste País, internado para fazer uma operação ao coração, que me confessou o quão complicado era “descer do pedestal” naquela situação. E deu um exemplo engraçado: o simples facto de uma enfermeira lhe ter perguntado se estava bem durante a noite e tapado os ombros e aconchegado como fazia a sua própria mãe quando ele era pequeno, foi o que o fez dormir descansado.
Quantas vezes por semana ainda dá consultas?
Uma vez por semana. Tenho doentes que vejo há 50 anos.
Como ocupa o resto do seu tempo?
Também ainda dou aulas, mas agora numa universidade sénior. Agora tenho mais tempo para a família. São sete filhos e 16 netos. Alguns deles partilham comigo um dos meus grandes interesses atualmente: a física quântica. As energias. Saber o que está para além, depois de tudo isto que conhecemos.
O apelo da medicina sobre os estudantes tem vindo a mudar?
O grande apelo da medicina, hoje em dia, é o terreno da investigação, que é enorme. E também porque está cientificamente muito desenvolvida. Financeiramente, há muito mais contenção económica hoje em dia e os médicos ganham, proporcionalmente, muito menos do que no passado.
Ainda assim, a medicina continua a atrair muita gente. Veja-se as médias.
A grande questão das médias é que são indicativo da capacidade de aquisição de conhecimentos dos alunos, mas não da sua vocação para a medicina humanizada. Uma média elevada não nos diz nada sobre a capacidade de contacto próximo com os doentes, sobre o faro para o diagnóstico, sobre a vocação para ouvir doentes com discursos mal feitos e mal orientados e que são muito diferentes dos discursos literários quem vêm nos livros.
Que cuidados teve ao longo da vida com o seu próprio coração?
Sempre fui adepto da máxima ‘in medio stat virtus’ (no meio está a virtude). Ou seja, nunca comi demais, nunca fiz exercício demais, nunca abusei demais e também nunca fiz grandes restrições. No equilíbrio, no meio, está geralmente o princípio de uma boa saúde.
Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, fundada há 70 anos. Como vê hoje a sua missão?
Na sua fundação, a sociedade teve o grande condão de unir médicos, grupos de médicos e até as diversas instituições de cardiologia e de promover a discussão coletiva, pois é dela que se chega à virtude. Essencialmente, foi à Sociedade Portuguesa de Cardiologia que se deveu a criação da Sociedade Europeia, a internacionalização da cardiologia portuguesa e a possibilidade de muitos dos nossos cardiologistas terem conseguido desenvolver investigação lá fora, nomeadamente nos Estados Unidos e em muitos outros países. Eu, por exemplo, fui um deles.
CM – Vanessa Fidalgo, 23 de Setembro de 2019 às 17:20