Acto Médico

A ÉTICA NO ACTO MÉDICO

Carlos Ribeiro                                                                                                         

Num Curso sobre Saúde não podemos apenas falar de doenças, temos de conhecer os problemas da população, particularmente dos doentes e dos familiares, mas também as obrigações e as dificuldades dos profissionais de saúde.

Entre nós, a qualidade e a esperança de vida dos portugueses melhorou substancialmente, com a oficialização das carreiras médicas, a implantação do

Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o recurso alargado às novas tecnologias e terapêuticas. Hoje somos o primeiro país no mundo no declínio da mortalidade infantil e o quinto com melhor evolução da esperança de vida nos últimos trinta anos.

Segundo o World Health Report já no ano 2 000 estávamos em 12.º lugar em relação à distribuição da saúde na população, enquanto o Reino Unido ocupava o 18.º lugar, a Alemanha o 25.º e os Estados Unidos da América o 37.º

Como corolário, penso ser o momento adequado para se analisar não o trabalho realizado, mas o que se deve fazer para melhoria do processo e as repercussões éticas dessas acções ou dessas eventuais omissões.

Segundo Platão, o conceito de Ética implica a análise da arte, dos costumes, do fazer bem, tentando tornar bom aquilo que é feito e quem o faz. Desse modo, considero oportuno analisar as mudanças introduzidas no  “modus faciendi” do acto médico, discutindo as suas implicações Éticas, sabendo de antemão que a Ética é um alvo em movimento, dependente de múltiplas variáveis.

 Embora concorde com Sartre quando afirma, que o “homem está condenado a ser livre”, logo, responsabilizado a assumir a razão das suas escolhas, não posso esquecer J. Ortega y Gasset, quando afirma, “Eu, sou Eu e as minhas circunstâncias”.

Tal postulado justifica alterações no comportamento médico em função das circunstâncias.

Todavia, são inegociáveis os três princípios éticos, referidos no relatório de Belmont (1978), onde se postulou a valorização da vida e o respeito pela pessoa humana, depois dos crimes nazis e da irresponsabilidade da investigação clínica, que grassava no EUA.

A saber:

 1.º Autonomia do doente.

 2.º Beneficiência e não Maleficiência na relação com o doente.

 3.º Justiça em todas as opções tomadas.

Por outro lado, o médico deve ser um profissional livre, sujeito apenas às “legis artis” testadas cientificamente, e, jamais obrigado a actuar com sujeição a critérios financeiros, economicistas, políticos ou populistas, que possam ferir a suas postura ética.

Temos,  todavia, de chamar a atenção para o facto de actualmente em Portugal a relação médico-doente passar por alterações, que podem dificultar o cumprimento integral e desejável das obrigações éticas por parte dos clínicos.

Infelizmente a medicina deixou de ser uma profissão liberal, para passar a ter estatuto de profissão por conta de outrem, no que se refere à grande maioria dos quase cinquenta mil médicos inscritos na Ordem dos Médicos. O elevado número de profissionais no activo, os novos desafios que a sociedade lhes impõe, os diversificados e injustos contratos de trabalho, a implosão da actividade liberal, o aparecimento de grupos económicos privados protagonistas na área da saúde, a solicitação quotidiana à emigração, a multiplicação de especialidades, sub especialidades e competências de conteúdos e limites nem sempre bem codificados, o desinvestimento do Estado no SNS, nas Universidades e na Investigação, a diminuição drástica do envolvimento da Indústria Farmacêutica na Educação Médica Pósgraduada ou Continuada são variáveis introdutórias de obstáculos que afectam o construtor psicológico, científico, técnico e cultural dos médicos, com prejuízo do doentes.

Assim, não iremos tratar nesta apresentação dos temas habitualmente discutidos pelos especialistas de Bioética, que versam correntemente circunstâncias cruciais e polémicas ligadas ao início e ao fim da vida, ou seja, a interrupção da gravidez, a eutanásia, a distanásia, a definição de morte cerebral, a interrupção da ventilação assistida e de outros apoios mecânicos ou de tratamentos sofisticados e agressivos em casos clínicos terminais. Justifica a omissão, o facto dessas situações se encontrarem codificadas nas leis do país ou em regras difundidas largamente e de, na maioria desses casos, as opções a realizar serem partilhadas com o recurso a especialistas das áreas clínicas em discussão. Em determinadas circunstâncias, o médico pode até pedir escusa, como objector de consciência por motivos religiosos, culturais ou cívicos.

Na verdade, hoje as preocupações éticas dos médicos vão ser com mais frequência outras, filiadas nas novas circunstâncias sociais referidas, que podem obrigar  o clínico a atitudes que eventualmente ferem princípios  por vezes conflituantes.

Se anteriormente a postura ética do médico assentava na relação médico-doente-colega, codificada no juramento de Hipócrates e no postulado “não faças ao outro o que não desejas que te façam a ti”, agora o clínico é confrontado com circunstâncias devidas às insuficiências ou aos objectivos do empregador. Deste modo as relações médico-doente-empregador são socialmente instáveis, introduzindo ruído, complexidade e anarquia nos desempenhos. Consequentemente o doente passou a ser um utente, o beneficiário transformou-se em acionista, o médico em funcionário público, e o empregador, estatal ou privado, surge como óbvio dominador e patrão do sistema,  actuando em função dos seus  interesses.

Neste cenário, o médico colocado entre o doente, que evoca direitos, e o empregador, que delimita ou sugere aumento de gastos em função dos seus objectivos financeiros, terá muita dificuldade em definir, cuidados adequados e de boa qualidade, que não agridam os interesses e direitos dos doentes, expressos em Bali em 1995 pela Associação Médica Mundial e que simultaneamente não colidam com as suas obrigações éticas.

A interferência de terceiros  convida o clínico a ser apenas um “economista da saúde”, obrigado a estudar o custo/benefício das suas opções, e, não o benefício/custo das suas intervenções . Sabemos que o médico deve primariamente avaliar o benefício das suas propostas e só depois identificar os seus custos.

É obrigação ética, pois, que o racional da acção médica na eleição dos cuidados a prestar aos doentes,  se baseie no benefício-custo de cada acto.

Assim, a primeira preocupação do profissional é a problemática do doente propondo-lhe o tratamento mais adequado e obrigando-se a humanizar as relações de todos os intervenientes no acto médico, sabendo que um dos parceiros, o doente, está diminuído e necessita de ajuda.

No entanto, também o profissional, sujeito a sobrecarga de trabalho, frequentemente não apresenta  condições físicas e psicológicas susceptíveis de realizar actos médicos de qualidade.

A politica economicista imposta ao Ministério da Saúde trouxe como resultado a diminuição do número de médicos em actividade no SNS.

A falta de capital humano e a abertura de novas obrigações assistenciais, ocasionou que as Administrações fossem forçadas a reduzir os tempos  de consulta para aumentar o número de atendimentos, estender a lista dos doentes da responsabilidade dos médicos de família e de outros especialistas, obrigar à realização de mais de uma Urgência Hospitalar semanal, não permitir abusivamente o cumprimento de descansos compensatórios, circunstâncias agravadas por uma má resposta que a informática correntemente proporciona, etc., etc….

Tal situação justifica ser a classe médica uma das mais afectadas pelo “burnout”. Num estudo recente (Cátia Leitão) verificou-se que 21% dos médicos apresentavam um nível elevado de exaustão emocional, enquanto outro estudo apontava para 40,5%  (Dr. Miguel Guimarães).

A exaustão potencia o erro médico e dificulta uma boa relação médico-doente. O médico com sinais de “burnout” tem obrigação de suspender a sua actividade para defesa dos seus doentes.

Tal comportamento ético teria efeitos catastróficos no SNS.

Resolver este problema deveria ser, neste momento, uma das prioridades  do Ministério da Saúde.

Ao querer humanizar o acto médico, ou seja   colocar o doente no seu devido pedestal, não podemos esquecer, todavia,  que a capacidade do clínico tem limites.

Humanizar é acolher o semelhante como pessoa, irmandando-o e tornando-o confiante na arte médica, que só um profissional no uso pleno das suas capacidades pode proporcionar.

Sabemos que humanizar é respeitar a dignidade do doente, reconhecendo a sua autonomia e a sua liberdade. Tal garantia passa pelo facto de obter por parte dos doentes um consentimento informado, aquando de  qualquer procedimento clínico que envolva eventual risco, mesmo de pequena monta.

O consentimento informado visa o respeito da autonomia e da liberdade individual do doente (Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, UNESCO, 2005).

O consentimento informado, tal como o segredo profissional, visa beneficiar o doente e não defender o médico.

O segredo profissional é uma garantia, dada ao doente, de respeito pela sua privacidade, pois que apenas pode ser revelado por sua autorização ou em situações de dever legal ou de justa causa.

Sabemos, todavia, que a defesa da privacidade, em relação à saúde individual, não é uma preocupação dominante na sociedade portuguesa. É comum que as doenças pessoais sejam um dos temas mais frequentes das conversas entre amigos e conhecidos ocasionais.

É um imperativo ético, que o médico divulgue o interesse dos doentes  em defenderem  a sua privacidade, embora as circunstâncias em que se realizam os actos médicos nas Urgências Hospitalares e o eventual internamento dos doentes em macas, dispersas pelos corredores das enfermarias não facilitem tal objectivo. Mais uma vez as circunstâncias dificultam a adequada postura do médico, quando obrigado a trabalhar em tais ambientes.

Actualmente, aumentou o número de doentes que parecem estar descontentes e desconfiados. Tal ambiência propicia o seu recurso ao poder judicial, que obrigará os médicos a uma medicina defensiva, requisitando exames onerosos para atestar objectivamente as suas decisões, com vista a futura defesa. A medicina defensiva, de má memória nos EUA, traz maiores encargos ao doente e ao erário público e é eticamente reprovável.

O doente, por outro lado, ao tornar-se mais exigente e até por vezes  agressivo, passou a fornecer um caudal de protestos à comunicação social, sempre ávida de notícias negativas e pouco interessada em conhecer as causas e a solução  adequada para os diferendos existentes.

Este contexto e uma  comunicação clínica deficiente e apressada facilitam o aparecimento  das chamadas medicinas alternativas, onde pululam  muitos casos, denunciados pela Ordem dos Médicos, de charlatanismo e de publicidade enganosa.

Sabemos que o doente será tanto mais respeitador e aderente aos conselhos e prescrições médicas, quanto mais completo for  o cumprimento do ritual comunicacional, impossível de realizar no curto período proposto actualmente pelas Administrações. A obrigatoriedade  de uma anamnese cuidada e de uma observação clínica detalhada, não pressupõe o abandono do recurso à utilização, se necessário, de todos os meios que o progresso científico disponibiliza, nomeadamente não ignorando as informações ditadas pela medicina baseada na evidência científica e a obrigatoriedade de recorrer a todo o “armamentarium” tecnológico disponível e adequado.

Desejamos, no entanto, que a actual medicina tecnológica, criadora de “engenheiros da medicina”, se humanize a curto  prazo e que o comportamento ético não saia ferido substancialmente, face à panorâmica em que hoje se desenrola, por vezes,  o acto médico.

A nossa profissão, dita liberal, tem no futuro de aceitar trilhar com espírito grupal um caminho difícil e espinhoso na defesa da medicina e dos doentes considerados singularmente, pois cada um possui características únicas e irrepetíveis. Por mais sofisticados e perfeitos que sejam os ensaios clínicos, será sempre difícil transpor linearmente os seus resultados, aquando da abordagem do nosso doente, dado este ser uma personalidade única e irrepetível. Infelizmente é um trabalho hercúleo impor às Administrações o  paradigma da singularidade do acto médico. Tanto mais que a uniformização, a programação e a regulamentação são o moderno espartilho imposto ao desempenho  médico, para gáudio de terceiros e prejuízo dos doentes. Actualmente a  identificação de DESCONFORMIDADES nos Serviços Clínicos e nos Actos Médicos por Comissões, cuja as exigências ridículas são cópias de americanices de pacotilho e onde o senso e a credibilidade estão habitualmente ausentes.

Nesta apresentação pretendemos defender a reimplantação do humanismo no acto médico, sublimando o tratamento da pessoa e não unicamente a luta contra a doença. Infelizmente,  por vezes, a  consulta médica passou apenas a ser considerada um serviço, a que se atribui um tempo de duração, um preço e um valor estatístico. O médico é obrigado  a responder mais às exigências do gestor do que às interrogações do doente, ocupando o seu tempo a dialogar obrigatoriamente com o computador: Tal situação levanta novos problemas éticos, que é necessário ultrapassar.

Também os extraordinários resultados obtidos com a evolução da medicina conduziram ao aumento da esperança de vida, ao crescimento do recurso a serviços clínicos e a uma maior exigência e incomensurável expectativa por parte da população. Os custos, desse modo, subiram, o Estado sentiu a obrigação de se responsabilizar pelo sector e o aforismo a saúde não tem preço tornou-se indefensável. Os gestores, os economistas e os financeiros tomaram deste modo a direcção do processo.

Verifica-se o crescimento em efectividade estatística, enquanto se deteriora  a afectividade para com o doente. Para unir efectividade com afectividade, ou seja, para construir o binómio alta tecnologia-humanismo, torna-se necessário reestruturar o modus faciendi do acto médico.

Em suma, humanizar o acto médico e dignificar a pessoa doente, respeitando a sua liberdade e dignidade é hoje a maior preocupação dos clínicos, que diariamente, não abdicam dum comportamento ético nos seus desempenhos, confrontados com a presença de terceiros, que em certos casos, podem desvirtuar seriamente o binómio médico-doente e dificultar a postura ética do clínico.

Todavia, concordo com Frei Bento Domingues, quando afirma: “conformar-se com o estado actual do mundo é a grande traição que diariamente nos tenta. A resignação é o nosso pecado”.

Arranjemos forças para suplantar este moderno pecado verdadeiramente epidémico.

Por nossa parte continuaremos a denunciar a má “práxis” do acto médico quando realizado “à la minute” e a considerá-lo desse modo, um atentado à boa postura ética do médico.

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